De como o jornalismo brasileiro nasceu tardiamente. Em Londres.
CECÍLIA PRADA
No quadro do jornalismo atual, precário, inquieto, híbrido e endividado, em que a própria sobrevivência da imprensa escrita é diariamente ameaçada pela avalanche midiática, a instituição de 1º de junho como Dia da Imprensa é digna de nota. São tantos os dias disso e daquilo no nosso calendário, que já não sobram muitos vagos. Mas, tudo bem, já que nesta era de espetáculos eletrônicos não podemos fazer muito para deter o declínio dos ex-impérios jornalísticos, consolemo-nos com um breve mergulho na história, para dela extrair os primórdios singulares da imprensa no Brasil.
A data escolhida como Dia da Imprensa não podia ser mais apropriada: em 1º de junho de 1808 foi lançado, em Londres, o primeiro jornal brasileiro – o "Correio Braziliense". Uma publicação, portanto, que já nasceu bastante exótica. Jornal de um exilado, criado, dirigido e escrito por um único homem – Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (1774-1823) – e que teve sempre, no dizer do jornalista, "como escopo principal o Brasil". De nome grande e personalidade maior, Hipólito é ainda hoje reivindicado como co-nacional tanto de brasileiros como de portugueses – por ter nascido em Colônia do Sacramento (hoje pertencente ao Uruguai), um enclave português em território espanhol.
Após ter feito os primeiros estudos em Porto Alegre, o jovem Hipólito – então com 19 anos – foi mandado para Coimbra, onde se formou em leis, filosofia e matemática. Nunca mais voltaria ao Brasil. Tornou-se funcionário do governo português aos 24 anos e viajou para os Estados Unidos e o México, a serviço, para estudar a economia dos dois países. Em Filadélfia, ingressou na maçonaria, fato que influenciou, dali por diante, todo o seu modo de pensar e agir. Por causa dessas "novas idéias", começou a ser perseguido ao voltar a Portugal, onde ainda imperava o Santo Ofício da Inquisição.
Em 1802 realizou uma viagem à Inglaterra, oficialmente para comprar livros para a Biblioteca Pública de Lisboa e máquinas para a Imprensa Régia. Secretamente, porém, tinha por objetivo tentar a filiação de algumas lojas maçônicas portuguesas ao Grande Oriente de Londres. Uns três ou quatro dias após seu regresso a Portugal, foi preso por ordem de um famigerado chefe de polícia, Diogo Inácio de Pina Manique, e encaminhado aos cárceres da Inquisição, onde permaneceu até 1805. Então, naturalmente ajudado pelos confrades "pedreiros-livres", conseguiu fugir da prisão, disfarçado de criado de serviço. Escolheu a Inglaterra como seu domicílio permanente – lá "era amigo do rei", literalmente... isto é, do filho do rei Jorge III, o duque de Sussex, chefe da maçonaria inglesa. Casou-se com uma inglesa e recebeu o status de denizen – estrangeiro admitido a certos direitos políticos. Ao morrer, aos 49 anos, deixou numerosa descendência britânica.
A condição adquirida protegia-o da perseguição política, que como cidadão português ou brasileiro inevitavelmente sofreria, e permitiu que exercesse livremente sua profissão. Ele próprio confessava: "Propusemo-nos a escrever em Inglaterra para poder, à sombra de sua sábia lei, dizer verdades que é necessário que se publiquem, para confusão dos maus e esclarecimento dos vindouros". Furioso, seu principal inimigo, o conde de Funchal, embaixador português em Londres, dizia, do "Correio": "Essa terrível invenção de um jornal português na Inglaterra", mas era obrigado a engolir o enorme sucesso do empreendimento. Os "folhetos de Londres" circulavam em Portugal e de norte a sul no Brasil, apesar dos numerosos interditos sobre eles lançados pela Coroa portuguesa.
Até hoje o "Correio" é unanimemente louvado pelos historiadores, a começar por Varnhagen: "Talvez nunca o Brasil tirou da imprensa mais benefícios do que os que lhe foram oferecidos nesta publicação". O valor literário do estilo de Hipólito (que deixou também vários livros) foi amplamente reconhecido por muitos críticos. Sílvio Romero conseguiu elevá-lo a patrono da cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras. E Antonio Candido, em Formação da Literatura Brasileira, diz: "Hipólito foi o primeiro brasileiro a usar uma prosa moderna, clara, vibrante e concisa (...) foi o maior jornalista que o Brasil já teve, o único cuja obra se lê hoje com interesse e proveito, foi um escritor e um homem de pensamento, exprimindo melhor que ninguém os temas centrais da nossa época das luzes".
Os três tempos de Hipólito
Para os jornalistas de hoje, ligados em rede com o mundo todo, e que podem ter acesso em poucos minutos aos mais diversos acontecimentos, lembrar que no início do século 19 – antes mesmo da invenção do telégrafo – os fatos acontecidos no Rio de Janeiro levavam até seis meses para repercutir em Londres, e vice-versa, implica automaticamente o reconhecimento de que a profissão tinha naquela época um caráter inteiramente diverso. Que requeria uma formação intelectual diferente, um tempo próprio – o "Correio Braziliense ou Armazém Literário" (nome que já indicava a diversidade de assuntos nele tratados) foi publicado com absoluta regularidade, mensalmente, de junho de 1808 a dezembro de 1822 e funcionou ativamente como paladino e esteio de dois movimentos políticos essenciais e intimamente ligados – a Revolução do Porto (1820) em Portugal e a Independência do Brasil.
Hipólito aliava a esse tipo de jornalismo literário, ao formato livro-jornal comum na época, informações de caráter prático como cotações das Bolsas ou o rumo dos negócios e um amplo noticiário sobre o que ocorria na Europa. Se bem que naturalmente defasadas, essas notícias pelo menos colocavam dentro do "mundo" os semibárbaros brasileiros, ou "brasilienses" – como se dizia naquela época, uma vez que o termo "brasileiro" era reservado aos portugueses que vinham tentar fortuna no Brasil.
O historiador Sérgio Goes de Paula, organizador e apresentador do livro Hipólito José da Costa, caracteriza a linha editorial do "Correio Braziliense" segundo um critério de tempo: vê no conjunto dos escritos jornalísticos de Hipólito diferenças entre um tempo mais longo, medido em anos, durante os quais foi objetivo do autor formar elites, instruí-las com a publicação de obras inteiras traduzidas e de críticas das principais obras econômicas e políticas da época; umtempo mais curto, medido em meses e também regular, com o objetivo de dar informação; e um tempo ainda mais curto e de medida variável, correspondente aos fatos recém-acontecidos no Brasil ou em Portugal, que deviam ser comentados.
Realpolitik
A partir da Revolução do Porto, o "Correio" muda de cara – volta-se mais diretamente para a política, influi decididamente em Portugal. É a sua fase mais trepidante – os acontecimentos locais, é claro, rapidamente eram refletidos em Londres e em outros pontos da Europa. O jornal de Hipólito acresce aos seus méritos o de "ser o primeiro a colocar o Brasil como um protagonista que logo fará sua entrada na cena política".
Surpreende ainda hoje a pauta do jornal: além de publicar seguidamente notícias também das colônias espanholas na América, mostrando seu interesse pela política continental, Hipólito defendia a necessidade de uma nova capital para o Brasil (no interior, às margens do São Francisco ou do rio das Velhas) e insistia na necessidade da abolição gradual da escravidão e do estímulo à imigração européia.
Pelo seu ideário iluminista e pela capacidade de formar opiniões, o jornalista podia até mesmo manipular a distância a corte portuguesa no Rio de Janeiro – a começar pelo próprio dom João VI. Este, dizem, não deixava de ler, até com complacência, o "Correio", que aliás nunca o atacou pessoalmente, mas, sim, ao regime monárquico absolutista e aos desmandos de ministros e outras autoridades. A posição do "Correio", no qual Hipólito gastara cinco anos traduzindo e publicando a obra de Simonde de Sismondi – considerado por Karl Marx chefe do socialismo pequeno-burguês –, a partir de 1820 está sedimentada: constitucionalista, contra os aristocratas, oposto a uma corrente que propugnava a reunião de Portugal à Espanha. E resolvido, principalmente, a demonstrar à Coroa portuguesa que, com as mudanças que se operavam no mundo (ruía o absolutismo), o Brasil, desde 1815 elevado à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarve, nunca mais voltaria a ser a colônia passiva e explorada que um dia fora.
A ironia foi a grande arma de Hipólito. Usou-a brilhantemente, como no exemplo citado pela historiadora Isabel Lustosa em seu livro Insultos Impressos – um comentário do "Correio", datado de 1808, sobre decreto do governo português recém-instalado no Rio de Janeiro, declarando "guerra aos botocudos". Fingindo levá-lo a sério, Hipólito afirmava que só publicaria o decreto quando recebesse "a resposta de Sua Excelência o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra da Nação dos Botocudos", ressalvando: "É verdade que ela [a Nação botocuda] ainda não sabe ler, mas aprenderá, julgo eu, para responder a isto".
Foi durante os dois anos que antecederam a independência do Brasil que essa ironia, a fineza do seu estilo, que nunca perdia a compostura nem faltava à verdade, serviu – mais do que nenhum outro discurso da época – para fortalecer a posição do país diante de Portugal. Já a própria transferência da corte para o Rio de Janeiro, em 1808, a seu ver promovera uma inversão dos papéis: "Portugal tornado colônia e o Brasil, metrópole". Chamava também a atenção de seus leitores para a posição equivocada dos europeus em relação às colônias americanas: "A obstinação em que se está na Europa, de querer considerar aquelas importantes e poderosas regiões como pequenas colônias em sua infância, é um erro que a experiência dos Estados Unidos devia ter ensinado a retificar".
Após o retorno de dom João VI a Portugal, os esforços dos partidários da independência concentraram-se no príncipe regente dom Pedro. Como diz Caio Prado Júnior, "num trabalho intenso de o afastar da influência das cortes portuguesas e trazê-lo para o seio dos autonomistas". Para o historiador Barbosa Lima Sobrinho – que organizou e publicou toda a coleção do "Correio Braziliense" –, teria realmente havido um entendimento entre José Bonifácio e Hipólito da Costa para influir sobre o príncipe, identificando seu destino com o do Brasil. Segundo vários historiadores, o resultado dessa "manobra" teria sido a independência do Brasil.
Insultos e bordoadas
Quando, em 1808, a corte portuguesa transferiu-se para o Brasil, o príncipe regente trazia consigo uma tipografia completa. Assim que se instalou no Rio de Janeiro, instituiu a Imprensa Régia – mas no mesmo decreto criou também a censura prévia. Apenas seria permitida a circulação de órgãos como a "Gazeta do Rio de Janeiro", fundada no mesmo ano, mas que só publicava atos oficiais do governo.
Somente em 1821, com a volta da família imperial a Portugal, foi extinta a censura, surgindo então vários jornais, como o "Revérbero Constitucional Fluminense", "O Espelho" e "A Malagueta", no Rio de Janeiro, e o "Diário Constitucional",na Bahia. Todos profundamente empenhados em debates políticos, primeiro sobre a permanência do príncipe dom Pedro no Brasil e depois sobre a independência. Atuação destacada no período teve o jornal "Sentinela da Liberdade",publicado em Pernambuco por Cipriano Barata.
A liberdade de expressão durou pouco tempo, pois logo após a independência foi restabelecida a censura – mas sem muito efeito, pois era abertamente desafiada por vários órgãos, da corte ou das províncias.
Foi particularmente rica essa época na proliferação de pequenos jornais, semanários e revistas caracterizados por linguagem agressiva, ofensiva, muitas vezes chula e eivada de termos de baixo calão. Sabemos que estavam acirrados os ânimos naquele período, pois à independência formal opunha-se o continuado conflito de opiniões e facções políticas – ainda muito ativo estava o partido português, enquanto maçonaria e republicanos confrontados passavam até mesmo dos insultos verbais à conspiração e aos atentados armados.
O mais interessante é que um jornalista havia que, embuçado até em 29 pseudônimos, enchia colunas e distribuía a torto e a direito catilinárias e bordoadas – ele se chamava, de nome notório e principal, Pedro de Alcântara de Bragança e Bourbon, mas durante mais de oito anos acobertou-se por detrás de vários nomes. Em sua estréia jornalística, ocorrida em 15 de janeiro de 1822, usava Sua Alteza Real o pseudônimo de "Simplício Maria das Necessidades, Sacristão da Freguesia de São João de Itaboraí"; mais tarde, "P. Patriota", "O Ultra-Brasileiro", "O Quitute", "O Inimigo dos Marotos", "Piolho Viajante", "Duende", "O Espreita", "O Derrete-Chumbo-a-Cacete", "O Destemido", "O Açoite dos Patifes", "O Verdadeiro e Sincero Amigo do Sistema Monárquico Constitucional", etc. Não é preciso lembrar que em muitos desses artigos colaborava o seu maior amigo e conselheiro, o Chalaça.
Mas em seu estudo sobre a imprensa humorística do Império, Délio Freire dos Santos (in Prefácio ao Cabrião, reedição fac-similada) observa que sob o pseudônimo de "O Filantropo" o príncipe teria se mostrado um precursor da extinção do tráfico e da abolição da escravatura. Chegou também, quando já imperador, a escrever artigos com o próprio nome – segundo o historiador Hélio Vianna, esses documentos importantes, encontrados nos arquivos da família imperial brasileira, não foram publicados.
O que é certo é que em 1830 o monarca-jornalista seria "arrolhado" pelo marquês de Barbacena, seu principal ministro, que o fez "prometer não escrever mais para as gazetas", enquanto proibia também aos jornalistas esconderem-se atrás de pseudônimos. Sentindo na pele essa "falta de liberdade de expressão", o imperador aproveitou a Fala do Trono para protestar...
Lendo-se as cartas e os artigos publicados por Sua Majestade Imperial, não há dúvida de que agiu bem Barbacena – é de uma grosseria incrível o seu "estilo", recheado de palavrões e chulices, o que torna impossível exemplificar aqui suas incursões jornalísticas, como gostaríamos de fazer. Os interessados poderão procurar tanto a obra de Hélio Vianna, D. Pedro I Jornalista, como o recente e saboroso livro já citado, de Isabel Lustosa.
"Mártires da imprensa"
Que a fúria dos governantes contra os inimigos da imprensa não se limitava à verbalização, dá-nos exemplo a agressão sofrida pelo jornalista português Luiz Augusto May, que dirigia "A Malagueta" – um jornal que contava com a simpatia de Hipólito da Costa, seu parceiro de ideologia "iluminista". Na noite do dia 6 de junho de 1823, May conversava com amigos e aguardava uma "prometida visita do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva" – após o lançamento de um número extraordinário do seu periódico, em que atacava diretamente os Andradas. Repentinamente sua casa foi invadida por sicários mascarados, armados de cacetes e espadas. Segundo Varnhagen, o jornalista só teria escapado de ser assassinado devido à presença de espírito de uma negra da casa, que teria apagado a luz, possibilitando a fuga de May, bem machucado, para a casa de um vizinho.
Foi grande a repercussão desse fato, tanto mais que também haviam tomado parte nele, dizia-se, "membros da camarilha inseparável do imperador, que a tal não se aventurariam sem a anuência do chefe".
Luiz Augusto May se tornaria assim "o primeiro mártir da imprensa" no Brasil, embora desde o início de 1822 já fossem registrados vários casos de prisão de jornalistas tidos como "subversivos". Coube a João Soares Lisboa, redator do "Correio do Rio de Janeiro", a "honra" de ter sido o primeiro jornalista processado no Brasil pela Lei de Imprensa (em agosto de 1822) – ele ousara cobrar do príncipe regente as prometidas "eleições diretas" (já!) para a Assembléia Constituinte.
Destino mais trágico teria, alguns anos mais tarde, o jornalista italiano Giovanni Baptista Líbero Badaró, assassinado em circunstâncias nunca bem esclarecidas, em São Paulo, em 1830. Era também médico e dava aulas de geometria no Curso Anexo, preparatório para o ingresso de estudantes na faculdade de direito. Fundara em 1829 o "Observatório Constitucional", que se tornou uma tribuna contra a autocracia de Pedro I. Diz a tradição das histórias paulistanas que, ao morrer, teria dito Badaró: "Morre um liberal, mas não morre a liberdade".
Por todo o país espalharam-se manifestações de repúdio pela morte do jornalista, com hostilidades abertas contra o imperador. Na histórica viagem que este empreendeu pela província de Minas Gerais logo depois, contam que quando Pedro I chegava às cidades os sinos das igrejas badalavam, em homenagem a Badaró. O resultado viria logo mais – no dia 7 de abril de 1831, quando, contrariado em seu ímpeto absolutista, o imperador foi forçado a abdicar em nome de seu filho ainda criança, o futuro dom Pedro II, e a retirar-se para Portugal.
Fonte:http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=188&Artigo_ID=2937&IDCategoria=3111&reftype=1&BreadCrumb=1